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V - Pombal e as raízes do Estado português moderno
Do século XVIII ao XXI, o espírito racional, centralizador e tecnocrático de Sebastião José de Carvalho e Melo ainda ecoa na burocracia, na administração e na mentalidade científica portuguesa. Um império de papel e cálculo que sobreviveu à própria monarquia.
Por António Cunha
Publicado em 06/11/2025 08:30
História, Filosofia & Religião

O arquiteto invisível do Estado moderno

Quando Sebastião José de Carvalho e Melo morreu - em 1782 - muitos acreditaram que o seu tempo havia acabado. O rei D. José já não vivia, e os velhos nobres que temiam a sua autoridade voltavam ao poder.
Mas o que o Marquês de Pombal havia criado não podia ser simplesmente apagado: ele havia reprogramado o ADN/DNA do Estado português.

O que começou como uma reconstrução urbana após o terramoto de 1755 transformou-se, com o tempo, numa reconstrução intelectual e institucional.
Portugal voltara a sair de um país conservador, de ordens religiosas e privilégios de sangue, para um Estado que funcionava com base em normas, relatórios, estatísticas e decretos — uma máquina racional, nascida do trauma e da ciência.


Nota do autor — Série Especial sobre o terramoto de 1755 e as suas implicações

Os cinco textos que compõem esta série são o resultado de pesquisas históricas realizadas com o intuito de nos aproximar de um dos períodos mais fascinantes e transformadores de um evento com consequências para a história universal: o Terramoto de 1755 e o legado do Marquês de Pombal.

Apesar do rigor na apuração, é possível que existam imprecisões, lacunas ou interpretações passíveis de debate, fruto da complexidade dos fatos e das diferentes leituras que a História permite.

Se, ao ler, encontrar informações que lhe pareçam incorretas, descontextualizadas ou incompletas, convidamo-lo a entrar em contacto connosco.
A História constrói-se no diálogo — e este projeto nasce justamente do desejo de pensar com espírito crítico e mente aberta.

Porque *compreender o passado é o primeiro passo para reconstruir o futuro*.


 

O nascimento do “espírito da administração”

A “razão pombalina” era, antes de tudo, a razão da administração.
Inspirado nas práticas observadas na Inglaterra e na Áustria, Pombal acreditava que governar exigia método, hierarquia e informação.

Essa visão deu origem a uma cultura que ficou impressa no tempo: a do Estado como gestor do destino coletivo, responsável por organizar, regular e instruir.

Ainda hoje, Portugal preserva traços desse espírito:

  • A centralização administrativa (Lisboa continua sendo o grande eixo de decisão do país);
  • A cultura burocrática, que privilegia regras e procedimentos formais sobre a improvisação;
  • O respeito técnico pela função pública, herdeiro direto do Estado racional criado no século XVIII.

Na prática, o país construiu uma espécie de burocracia ilustrada — eficiente, meticulosa e profundamente estruturada — cuja origem remonta ao Marquês de Pombal.


A ciência como política de Estado

Outra marca duradoura foi a ideia de que a ciência é instrumento de soberania nacional.
Pombal não via o saber como luxo filosófico, mas como ferramenta de poder.

Da reforma da Universidade de Coimbra (1772) nasceram gerações de técnicos, médicos, naturalistas e engenheiros que formariam as bases do Estado científico português, responsável por missões de exploração, cartografia, agricultura e saúde pública.

Nos séculos XIX e XX, essa mentalidade sobreviveu sob novas roupagens.
A criação de instituições como o Instituto Geográfico e Cadastral, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e, mais recentemente, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, seguem o mesmo princípio: governar é conhecer o território, medir a realidade, planejar com base em dados.

Hoje, essa tradição reaparece nas estruturas tecnocráticas e digitalizadas do Estado português moderno — desde o recenseamento eletrónico ao sistema fiscal automatizado — herdeiras diretas da lógica pombalina: eficiência, controlo e racionalidade.


O lado sombrio da razão

Mas o legado de Pombal não é apenas virtude.
A sua “razão de Estado” também deixou uma herança de centralismo autoritário, de desconfiança em relação à iniciativa individual e de tolerância cultural à burocracia excessiva.

Portugal tornou-se, por vezes, um país que prefere o formulário ao risco, a norma ao impulso criativo.
Essa herança é visível na rigidez institucional que ainda hoje desafia empreendedores, cientistas e artistas — um paradoxo: o Estado que nasceu para modernizar o país, em certos momentos, tornou-se a própria muralha contra a inovação.

Contudo, é essa mesma herança que também assegurou a estabilidade administrativa e civilizacional de Portugal, mesmo em tempos de crise — das invasões napoleónicas ao colapso do império, da ditadura salazarista à integração europeia.


O eco racional na democracia

A queda da monarquia, em 1910, e o fim do império colonial no século XX não apagaram o “espírito pombalino” — apenas o adaptaram.
A República, o Estado Novo e até a democracia contemporânea herdaram o mesmo impulso racionalizador:
a crença de que é possível governar com base em dados, em planeamento e em educação pública.

Projetos modernos, como o Plano de Educação de 1986, a rede científica e tecnológica nacional e o Programa Simplex (de desburocratização digital), são, em essência, expressões tardias da racionalidade pombalina — um Iluminismo tecnocrático em versão democrática.


O Iluminismo em versão XXI

Hoje, Portugal é uma das nações europeias com maior confiança na ciência e nas instituições públicas, segundo dados do Eurobarómetro (2024).
Ao mesmo tempo, é um país que valoriza o ensino público, o serviço civil estruturado e o planeamento urbano regulado — traços que o diferenciam de outros países mediterrânicos.

Essas características, segundo historiadores como José Eduardo Franco, representam “o Iluminismo permanente de Pombal” — um Iluminismo que deixou de ser uma ideologia para tornar-se um hábito cultural.

Lisboa, reconstruída há quase três séculos, continua a ser o retrato perfeito dessa mentalidade: racional, previsível, geométrica — e, por isso mesmo, resistente.


A razão que sobreviveu à fé e ao tempo

O terramoto de 1755 destruiu igrejas, mas construiu uma nova fé: a fé na razão.
E essa fé — laica, calculada, silenciosa — ainda move a engrenagem portuguesa.

A verdadeira força de uma nação não está na sua riqueza, mas na sua inteligência organizada”, teria dito Pombal, numa frase que sintetiza a sua filosofia de Estado.

Mais de duzentos e cinquenta anos depois, essa inteligência organizada continua a ser o alicerce invisível do país.
Portugal mudou de regime, de império, de língua administrativa, mas não mudou de lógica: continua a governar-se como Pombal sonhou — pela ordem, pela ciência e pela razão.


A herança pombalina no Estado português moderno

  • Administração centralizada: Lisboa como centro decisório e simbólico da autoridade estatal.
  • Cultura burocrática e tecnocrática: processos estruturados, valorização do método e da função pública.
  • Educação pública como motor social: herança da reforma de Coimbra e das Escolas Régias.
  • Planeamento urbano racional: da Baixa Pombalina aos modernos planos metropolitanos.
  • Ciência como política de Estado: tradição de pesquisa aplicada à administração, saúde e território.

 “A Razão de Pombal no Século XXI”

Digitalização e simplificação administrativa (Programa Simplex) – continuidade da racionalização estatal.
Planeamento científico e tecnológico nacional (FCT) – herdeiro direto do modelo coimbrão.
Instituições públicas fortes e confiáveis – reflexo da cultura de Estado criada no século XVIII.
Educação e meritocracia técnica – pilares que permanecem na função pública e no ensino superior.
O Estado como guardião da racionalidade coletiva – o eco duradouro do “déspota iluminado”.


️VI -  Epílogo – A chama e a sombra

Entre a tirania e o progresso, entre a régua e o compasso, o Marquês de Pombal deixou mais do que ruas e decretos: deixou uma mentalidade.
Uma forma de pensar o poder como ciência, o espaço como ordem e o futuro como projeto.

E, talvez sem perceber, Portugal do século XXI ainda caminha sobre o traçado que ele desenhou com a régua da razão — uma régua que, mais de dois séculos depois, continua a medir o tamanho da sua modernidade.


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